quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Me diz: o que dizer?


Andando vagamente por um lugar qualquer, carregando um livro em uma das mãos e mexendo constantemente no cabelo com a outra. Balbuciava algumas palavras vãs, e expressava vigorosamente sua aflição. 
Parou em um bar, pediu uma bebida. Pousou o livro sobre o balcão, sentou-se e ficou ali esperando seu pedido chegar.

 - Da mais forte, por favor. 

A bebida chegou e ela tratou logo de acabar com tudo no primeiro gole. E assim se sucedeu nas seguintes seis doses. Totalmente desnorteada, começou a  conversar com a bebida, sua melhor amiga no momento.

- Eu sei, vou ficar aqui, acabada, largada na rua. Quem se importa? Não pedi pra se importar, eu pedi? Não, não pedi. Talvez seja esse o meu erro: não te pedi nada. Fiquei com medo de que você se sentisse sufocado, eu sei que você não queria se sentir assim. Te dei a liberdade, esperando que você preferisse desfrutá-la ao meu lado. Eu devia ter te pedido, qualquer coisa, só pra você saber que eu precisava que fizesse algo por mim, por mais fútil que fosse. 

As pessoas ao redor a olhavam pelos cantos dos olhos, e riam, discretamente, da embriaguez da moça. Um garçom chegou até ela e perguntou se precisava de ajuda para ir para casa, ela recusou, dizendo que ainda não estava satisfeita, e logo, pediu mais doses de vodka.

- E agora? Me diz: o que dizer? O quê? Falar com um copo de vodka, eu falo, grito, reclamo, desabafo. Mas sabe como é falar olhando fundo nos olhos de alguém? Por que eu detesto as coisas ditas com os olhos voltados para o chão. Mas quem olharia para o chão agora? Eu. Por que diabos esses olhos tem que mostrar tanto de alguém pra outro alguém? Nem óculos escuros disfarçam. Alguém devia rever o projeto do corpo humano, refazer isso aí, tem muita coisa errada. Aliás, tem muita coisa errada no ser humano, e a maior parte nem é nessa coisa de "fisicamente", tá nessa tal de mente. Uma mente que mente e desmente, que às vezes nem sabe mentir. 

Virou o copo, e pediu mais uma dose, para que pudesse continuar a sua conversa.

- Eu acho que devíamos todos ser bebidas alcoólicas. Olhem só que vida boa vocês tem! Ficam aí, envelhecendo pra melhorar a qualidade, e quando saem para o mundo, afogam em suas gotas alcoolizadas toda a desgraça mundial. Vocês são a solução pro desespero humano, pras desilusões, pro ódio, pra mim e pra você. E encorajam. Talvez seja por isso que eu vim buscá-las hoje. Me deem coragem! Eu preciso, não pra lutar numa guerra mundial ou salvar uma criança se afogando numa piscina. Preciso me salvar, preciso abrir essa boca e dizer o que eu tenho pra dizer. 
Foi no final de agosto, eu acho. Não estou em condições mentais de me lembrar. Eu jurei, por deuses, que jamais cairia nessa desgraça de abismo novamente. Quem disse que minhas juras são levadas a sério? Ah, por favor, eu te disse pra não acreditar.
Agora me diga, eu fui ou não fui transparente nas palavras? Eu disse, eu sei que disse! Inúmeras vezes, mesmo contra a minha vontade. Sabe quantas coisas eu fiz contra a minha vontade? Todas e nenhuma. Porque o "contra a minha vontade" na verdade era a minha vontade não revelada, envergonhada. Eu sabia que era um problema, desde o início. Mas eu gosto de problemas, eu gosto do díficil, ruim, complicado, errado, perigoso, escondido. Eu gosto disso, e foi por isso que eu me arrisquei. Ninguém entendia porque eu agia dessa forma, e entendiam ao mesmo tempo, não queriam acreditar no que acontecia. Maldito fim de setembro. Aquelas palavras que ficaram me rodeando a mente até quando as chances haviam desaparecido. Eu não posso dizer que não pensei em desistir, porque pensei e até tentei. Mas parecia que ia dar certo algum dia, e deu. Devia ter dado, não sei. 

Bebeu novamente, e pediu mais.

- Eu preciso acabar com esse silêncio. Meus ouvidos não aguentam mais a falta de palavras, a falta dos murmúrios. Você podia reclamar de mim, fazer aquelas acusações idiotas, falar e não dizer nada, zombar de qualquer porcaria desse mundo, mas fale! Fale! Não me faça ter que pedir pra falar. Lembra que eu nunca te pedi nada? Lembra que foi esse o meu erro? Afinal, você lembra de alguma coisa? Você se importa com alguma coisa? Não, não se importe. Era isso que eu tinha pensado, era essa a condição. Não devemos nos prender. Não queremos.
Só que eu não penso como uma prisão, é só, sei lá. Não sei definir, e tenho medo de dizer, de te fazer entender. Você pode rir, sei lá, mas eu cheguei a pensar que pudesse dar certo. Eu tentei esquecer durante uns meses aí, eu tive oportunidade de te substituir, por alguém bem próximo por sinal. Sabe o que eu fiz? Recusei. Inventei desculpas, fiz alguém se sentir mal porque eu não podia te substituir assim. É lógico que você não tinha nada a ver, nem sabia direito, mas eu não podia. É, eu funciono assim. Estranha, idiota, incompreensível. Agora me explica, o que você tem de tão especial? Quantos como você eu podia encontrar por aí? Minha vida mudou de rumo, por que eu precisaria de você? Eu preciso. Porque, eu sou assim, estranha, idiota, incompreensível. Porque foi assim, e assim você fez com que eu me interessasse, portanto, o problema é seu. 

Bebeu sua última dose àquela noite. Pagou a conta, pegou seu livro e continuou seu monólogo pelas frias calçadas no centro da cidade.

- Eu sabia desde o início. Me mostrou um mundo de possibilidades, de novidades. Fez eu me sentir uma adolescente em suas aventuras bizarras e imorais. Eu te disse que eu gostava dos culpados. E a mente que mente e desmente, dessa vez não mentiu. Em todas as vezes não mentiu, nem nas que tentou mentir. Eu sinto que estraguei uma parte importante da sua vida, e se eu pudesse, faria tudo diferente. Porque eu já tinha escrito mil histórias de como isso deveria acontecer, e no final, saiu tudo fora do roteiro. E você me fez gostar de não seguir o roteiro. Mas não teve a mesma importância pra você, creio eu. 
Não é como se prender, não tem aquelas frescuras, enfim, é só saber que eu te pertenço e que podia ser assim até o fim. Pertencer não tem que ser necessariamente prender, estar o tempo todo com, não deixar respirar fora do aquário. É estar em qualquer lugar que esteja, e saber que tem pra onde voltar, pra quem voltar. Saber que tem quem vai ouvir, quem vai rir, quem vai se interessar pela novidade que você tem pra contar, quem vai debater sobre esses assuntos complicados com você. É saber que tem alguém, que te tem, que você tem. Uma mesma ideia.

Foi caminhando por uma rua escura e pouco movimentada. Parou em frente à uma casa e deixou no chão o livro.

- Nunca me dei bem com esse tipo de coisa. Fui lá tomar, literalmente, "a coragem". Queria olhar nos seus olhos, esses olhos que mudam de cor frequentemente de um jeito engraçado, e dizer tudo, e quem sabe, ver com os meus olhos, esses meus olhos sem graça que nem de cor mudam, um sorriso se abrir no seu rosto, feliz com as palavras que você queria ouvir. Mas me restou um pouco de consciência, talvez a bebida não estivesse devidamente envelhecida, e essa consciência me disse que talvez eu visse seu olhar se desviar para o chão. E você sabe, como eu odeio as coisas que são ditas olhando para o chão. Não quero te odiar, por mais que você me odeie. Então decidi que o mais sensato, fosse que seus olhos, que mudam de cor frequentemente, deslizassem pelas minhas palavras, escritas sob gotas alcoólicas que salvam o mundo das desilusões, e entendessem o que eu queria te dizer. Eu inventei uma história, porque nem através das palavras e devidamente alcoolizada eu sou capaz de admitir. Mas você, e seus olhos que mudam de cor, vão entender, vão se localizar. 
Só me procure, se vier com aquele sorriso no rosto e olhando para os meus malditos olhos que não mudam de cor, porque eu detesto as coisas ditas olhando para o chão.

Apertou a campainha e, em seguida, tomou o rumo para casa. Sem certeza do caminho e se chegaria lá 
até amanhecer. Só queria ter tempo de saber a resposta, daqueles olhos que mudam de cor frequentemente de um jeito engraçado.


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